segunda-feira, 3 de abril de 2017

OS POBREZINHOS


LOBO ANTUNES E AS PROXIMAS CANONIZAÇÕES
OS POBREZINHOS

"Na minha família os animais domésticos não eram cães nem gatos nem pássaros; na minha família os animais domésticos eram pobres.
Cada uma das minhas tias tinha o seu pobre, pessoal e intransmissível, que vinha a casa dos meus avós uma vez por semana buscar, com um sorriso agradecido, a ração de roupa e comida. 
Os pobres, para além de serem obviamente pobres (de preferência descalços, para poderem ser calçados pelos donos; de preferência rotos, para poderem vestir camisas velhas que se salvavam, desse modo, de um destino natural de esfregões; de preferência doentes a fim de receberem uma embalagem de aspirina), deviam possuir outras características imprescindíveis: irem à missa, batizarem os filhos, não andarem bêbedos, e sobretudo, manterem-se orgulhosamente fiéis a quem pertenciam.
Parece que ainda estou a ver um homem de sumptuosos farrapos, parecido com o Tolstoi até na barba, responder, ofendido e soberbo, a uma prima distraída que insistia em oferecer-lhe uma camisola que nenhum de nós queria: - Eu não sou o seu pobre; eu sou o pobre da menina Teresinha.
O plural de pobre não era «pobres». O plural de pobre era «esta gente».
No Natal e na Páscoa as tias reuniam-se em bando, armadas de fatias de bolo-rei, saquinhos de amêndoas e outras delícias equivalentes, e deslocavam-se piedosamente ao sítio onde os seus animais domésticos habitavam, isto é, um bairro de casas de madeira da periferia de Benfica, nas Pedralvas e junto à Estrada Militar, a fim de distribuírem, numa pompa de reis magos, peúgas de lã, cuecas, sandálias que não serviam a ninguém, pagelas de Nossa Senhora de Fátima e outras maravilhas de igual calibre.
Os pobres surgiam das suas barracas, alvoraçados e gratos, e as minhas tias preveniam-me logo, enxotando-os com as costas da mão:
- Não se chegue muito que esta gente tem piolhos.
Nessas alturas, e só nessas alturas, era permitido oferecer aos pobres dinheiro, presente sempre perigoso por correr o risco de ser gasto (- Esta gente, coitada, não tem noção do dinheiro) de forma de deletéria e irresponsável.
O pobre da minha Carlota, por exemplo, foi proibido de entrar na casa dos meus avós porque, quando ela lhe meteu dez tostões na palma recomendando, maternal, preocupada com a saúde do seu animal doméstico
- Agora veja lá, não gaste tudo em vinho
o atrevido lhe respondeu, malcriadíssimo:
- Não, minha senhora, vou comprar um Alfa-Romeu.
Os filhos dos pobres definiam-se por não irem à escola, serem magrinhos e morrerem muito. Ao perguntar as razões destas características insólitas foi-me dito com um encolher de ombros:
- O que é que o menino quer, esta gente é assim.
E eu entendi que ser pobre, mais do que um destino, era uma espécie de vocação, como ter jeito para jogar bridge ou para tocar piano.
Ao amor dos pobres presidiam duas criaturas do oratório da minha avó, uma em barro e outra em fotografia, que eram o padre Cruz e a Sãozinha, as quais dirigiam a caridade sob um crucifixo de mogno. O padre Cruz era um sujeito chupado, de batina, e a Sãozinha uma jovem cheia de medalhas, com um sorriso alcoviteiro de atriz de cinema das pastilhas elásticas, que me informaram ter oferecido exemplarmente a vida a Deus em troca da saúde dos pais.
A atriz bateu a bota, o pai ficou ótimo e, a partir da altura em que revelaram este milagre, tremia de pânico que a minha mãe, espirrando, me ordenasse
- Ora ofereça lá a vida que estou farta de me assoar, e eu fosse direitinho para o cemitério a fim de ela não ter de beber chás de limão.

Na minha ideia o padre Cruz e a Sãozinha eram casados, tanto mais que num boletim que a minha família assinava, chamado «Almanaque da Sãozinha», se narravam, em comunhão de bens, os milagres de ambos que consistiam geralmente em curas de paralíticos e vigésimos premiados, milagres inacreditavelmente acompanhados de odores dulcíssimos a incenso.
Tanto pobre, tanta Sãozinha e tanto cheiro irritavam-me. E creio que foi por essa época que principiei a olhar, com afeto crescente, uma gravura poeirenta atirada para o sótão que mostrava uma jubilosa multidão de pobres em torno da guilhotina onde cortavam a cabeça aos reis".
Por António Lobo Antunes.





Fantástica esta analogia


No ventre de uma mãe havia dois bebés . Um perguntou ao outro:
  "Acreditas na vida após o parto?"
  O outro respondeu: "É claro. Tem que haver algo após o parto. Talvez nós estejamos aqui para nos preparar para o que virá mais tarde."
  "Disparate", disse o primeiro. "Que tipo de vida seria essa?"
  O segundo disse: "Eu não sei, mas haverá mais luz do que aqui. Talvez nós possamos andar com as nossas próprias pernas e comer com as nossas bocas. Talvez tenhamos outros sentidos que não possamos entender agora."
  O primeiro retrucou: "Isso é um absurdo. O cordão umbilical fornece-nos nutrição e tudo o mais de que precisamos. O cordão umbilicalé muito curto. A vida após o parto está fora de cogitação."
  O segundo insistiu: "Bem, eu acho que há alguma coisa e talvez seja diferente do que é aqui. Talvez a gente não vá precisar deste tubo físico."
  O outro contestou: "Além disso, se há realmente vida após o parto, então, por que ninguém jamais voltou de lá?"
  "Bem, eu não sei", disse o segundo, " mas certamente vamos encontrar a Mamã e ela vai cuidar de nós."
  O primeiro respondeu: " Mamã, acreditas mesmo na Mamã? Isto é ridículo. Se a Mamã existe, então, onde está ela agora?"
  "Ela está ao nosso redor. Estamos cercados por ela. Nós somos dela. É nela que vivemos. Sem ela este mundo não poderia existir."
  Disse o primeiro:" Bem, eu não posso vê-la, então, é lógico que ela não existe."
  Ao que o segundo respondeu: "Às vezes, quando estás em silêncio, se te concentrares e realmente ouvires, vais perceber a presença dela e ouvir a sua voz amorosa"

  Este foi o modo pelo qual um escritor húngaro explicou a existência de Deus.